Indiferente


Quando caiu os primeiros respingos de terra no meu rosto parei de me mexer, na verdade já tinha parado quando ele me colocou nesse buraco, me deixei estar aqui. Não lutei, não resisti.
Enquanto aquilo caía no meu rosto, pensava me tudo que ia deixar para trás. Eu tenho 13 anos e teria muito a viver, mas não tenho tristeza do que deixo, porque vejo que não deixo nada, nem ninguém. Eu já tinha morrido a alguns anos atrás, hoje é só o meu enterro de uma morte antecipada de imprevista.
Não me enterram viva por engano é por maldade. Maldade de que já tinha ouvido falar, mas agora sou vítima dela. Engraçado como a maldade me faz livre da indiferença.
Queria poder pensar agora nesse pouco tempo de consciência que me resta do amor dos meus pais,mas deles eu não recebi o amor que eu esperava. O amor que a expectativa do que eu via nas novelas me gerava. Esperei até agora por esse amor. Que eles chegassem aqui num momento triunfal e me tirassem daqui, me abraçassem e que tudo ficasse mudado. Mas depois de tantos anos, isso não vai acontecer, vão se passar dias para que deem a minha falta e muito mais dias, meses para acharem meu corpo. Me espera uma despedida sem palavras amorosas, sem cenas, sem amor; uma despedida conveniente, formal, de quem já esperava, e só faz a cerimônia para marcar o ato.
Não terei saudades desta minha curta vida. O que me espera depois? Vou ser amada? Vou ter uma nova chance? O que será de mim? Queria que alguém segurasse minha mão fria e  suspirasse nos meus ouvidos que tudo irá ficar bem, que eu cheguei enfim ao meu pote de outro no final do arco-íris.
E depois o que eu serei para os meus pais, para os meus colegas da escola? Uma mera referência; a filha que morreu; a amiga que morreu; aquela que morreu. O que contarão de mim? Não lembrarão dos livros que eu gostava de ler, que eu imitava a professora de ciências melhor que todo mundo?
Eu não fui nada para ninguém. Fui sempre um fantasma vivo. Sempre ouvi: "não sabia que você estava aí", "que susto menina", "pára de me assustar". Uma sombra
A indiferença foi a minha maior chaga, sempre aberta a sangrar. Mas minha morte agora estanca essa feriada. Esses que me enterram me veem e me ocultam, deixei de ser invisível, eles podem me ver. Vejo que está próximo. Minhas mãos frias já não conseguem segurar a terra. Eu fiz as unhas hoje, pintei de roxo, mas ninguém percebeu, ninguém viu.
Como é escuro aqui, silencioso. Estou aqui, você não viu, ninguém viu, e a partir de agora ninguém mais. A terra cobre o que é invisível definitivamente. Ela embala os que sofreram com a indiferença, embala em seus braços e os faz dormir como crianças. Ela me vê,eu a toco, ela me toca, ela sabe que eu estou aqui, mamãe me bota pra dormir.

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