Lentes

 


Saí da faculdade como uma lente que me faz querer ver alguns padrões para gerar uma classificação. Ai que lente horrível. Dá muito trabalho no supermercado, nas lojas de tecido, nas lojas de materiais de construção e nas livrarias nem te conto. É cansativo ficar mentalmente arrumando corredores de feiras, latas no mercado, vagas de estacionamento e banheiro de rodoviária. Tudo com alguma escala com fonte confiável. Essa minha lente tá um pouco gasta e as minhas bagunças mostram que eu preciso de óculos.

Todo mundo que aprende algo recebe uma lente. Essa lente faz com que a pessoa veja com clareza algo que para os outros, passa desapercebido. Nossas lentes fazem com que enxerguemos algo com um lugar diferente, o olhar de quem vive, estudou, aprendeu aquilo. 

Lembro de algumas lentes que recebi. Recebi muitas, aprender a limpar a bunda foi a mais importante pra mim, e a mais recente foi do Pecha Kucha. Recebi uma lente do assassinato de mulheres trans que eu nunca tinha me tocado, gostosofobia, easter eggs em filmes, n lentes.

Quando a gente aprende algo a lente fica entranhada na gente. Podemos perder as lentes, trocar, jogar fora. Acontecem coisas que fazem com que as lentes zerem e a pessoa tenha que começar o jogo do início. Recomeçar o jogo pode ser bom se não tem mais espaço para download, mas é sempre um risco porque você não sabe se terá backup. As pessoas tem mais medo do recomeço do que do fim do jogo. Quando as lentes não importam mais e deixam de existir fica só a essência. É poder ser totalmente livre das lentes que te deram um só mundo, enquanto você poderia ter vivido milhares na mesma vida. Deve ser daí que vem nosso fascínio por vampiros e por seres ressurrectos. Temos um desejo de viver mais de uma vida na mesma vida. Temos o desejo de poder começar de novo, com tempo, saúde e dinheiro. 

O que seria eu hoje se não fosse o tempo que eu usava com mais proximidade da minha alma a lente da religião? Talvez eu fosse outra pessoa. Mas eu nunca saberei.

Lembrei que tenho também alguns cacos que às vezes ficam verdes com a chuva e amarelados na seca, como as gramas de Brasília

Se a gente pudesse viver mais de uma vida na mesma vida poderíamos construir o olhar do médico que olha as funções biológicas somado como do engenheiro que vê a estrutura; somado com o advogado que vê as leis; somado com a estilista; com o pedreiro; o padeiro; gari e o equilibrista. Mas a maioria das pessoas só vai ter acesso a uma lente. A maioria das pessoas vai receber uma lente que as pessoas vão precisar, mas irão desprezar. Não vai ter condições de receber uma lente. Muitos não reconhecerão as lentes adquiridas; e muitos vão fazer de tudo para conseguir as lentes. E tem uma minoria, bem pequenininha que é indiferente às lentes, eles podem simplesmente não adquirir nenhuma. O por quê? São muitos porquês?

A verdade sobre as lentes é que todo mundo só tem pedaço e ninguém acessou ao todo. Todos vemos fragmentos. Todos vivemos fragmentos. E a dúvida que fica é se somos inteiros com tantas partes pequenas dentro de nós. Com tantas lentes gastas, arranhadas, usadas, danificadas, rachadas, inteiras e intactas....

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