A resposta que ele não deu


Para Gabs

- Um dia vou te dar uma prova do que é ser mulher preta.
- Beleza.

Eu falei beleza, mas devia ter falado tudo que ficou entalado aqui. Você acha que sua vida é dura por você ser mulher e preta é porque você não sabe o que é ser bicha preta. Vou te dar uma prova do meu dia-a-dia.

Levanto cedo para me arrumar, quero estar o melhor possível para ir à faculdade. Penteio meu cabelo, coloco uma roupa boa para ir à faculdade, mas antes vou na padaria comprar pão para minha família. Quando eu chego no balcão não tem ninguém para me atender e fico procurando com meu olhar onde está o funcionário. Como não o encontro vou até o caixa e peço para o carinha o chamar. E ele sem cerimônia grita: "Ritaaaa vem atender o veado". Eu deixei de comprar na outra padaria por um episódio igual a esse, gritei, reclamei, reclamei com um policial que estava tomando um pingado e comendo um pão com manteiga e ele me disse para eu parar de deixar ser um bicha escandalosa e fosse embora se não ele iria me prender. Me calei primeiro porque sou preta, depois eu sou bicha. Fiquei puta da vida, mas fui embora com o pão na mão e as lágrimas presas na garganta. Cheguei em casa e falei pra minha mãe, e ela me "aconselhou" a tentar ser menos bicha, tentar falar que nem homem e usar umas roupas de homem assim ninguém iria me chamar de veado na rua. Falei pra ela que eu não sou culpada da violência que sofro, expliquei todas as teorias, mas ela sequer notou que meus olhos estavam vermelhos e que havia um choro preso na minha garganta. Então quando o carinha dá esse grito com a Rita eu me dirijo ao balcão, peço o pão, pago e vou embora. Sem discussão, sem textão.
Vou pra casa, tomo o meu café e vou pra parada esperar o ônibus. Quando eu chego as pessoas se afastam de mim e tem dois meninos conversando e apontando pra mim e rindo, eu sei que eles estão falando de mim porque eles apontam diretamente pra mim. Tento fingir que eles não existem, coloco no celular a diva Beyoncé bem alto para não escutar. Passa um carro na parada e um cara que se julga muito engraçado coloca a cara para fora e grita viadoooo. 
Chega meu ônibus, dou o dinheiro ao cobrador, que reclama que não tem troco para cinquenta reais. Me deixa na roleta cinco minutos intermináveis e uma pessoa da fila grita "passa logo bicha" ele se contenta com sua dose de Paola Bracho diária e me deixa passar. Sento e espero meu troco, espero que ele faça um sinal como ele fez com as outras pessoas para que eu possa buscar meu troco. Sem me surpreender ele grita "viado vem buscar seu troco". Eu me levanto e todos do ônibus estão olhando para mim. Ninguém fala nada, ninguém defende bicha preta, quem terá coragem de ser o Índio para morrer por mim? 
Volto a me sentar rezando para que o antidepressivo faça efeito e que hoje eu não volte a pensar em morte. O ônibus vai seguindo para a faculdade. E para continuar o roteiro da minha vida entra um ex viciado vendedor de mel. Ele começa a dar seu testemunho de superação dos vícios e começa a falar de amor. Fala de Jesus e que ele ama a todos. Acho até legal. Aí ele começa. Aponta pra mim e fala na frente de todo o ônibus que eu sou um pederasta, que pratico pecado condenado por Jesus e que devo me arrepender dos meus pecados e assim Jesus irá me acolher e eu não irei ao inferno. Eu arrumo as costas, fico reta e começo a olhar para o horizonte. Queria descer e pegar outro ônibus, mas minha passagem está contada e não posso me dar esse luxo. Além de preta, bicha, sou pobre. No total é meia hora de pregação, sou chamado de Sodoma e Gomorra, aberração, pecadora, Madalena, sodomita e o caralho a quatro. Respiro fundo, coloco Evanescence para curtir minha depressão e rezo para que chegue logo na faculdade.
Enfim chego na faculdade e estou descendo para o bloco de salas. Vem um cara numa bicicleta e grita pra mim sai do meio viado.
Chego na sala e sou olhada de cima a baixo pelas pessoas. Elas tem um olhar de reprovação, de nojo pra mim, isso me dói muito. O professor chega começa a aula e durante toda a aula ele faz piadas que todos riem menos eu, porque eu sou o objeto da piada, ele usa da minha sexualidade para fazer piadas. E ele sequer sabe meu nome.
Na hora do almoço meus amigos não podem se encontrar comigo e tenho que comer sozinho. Nem tenho vontade de comer, só como por causa do remédio. Nem vou contar o resto do meu dia. Essa metade já é dolorida demais só pra lembrar. E fico a pensar nessa aula que ela quer me dar de ser mulher preta, eu é que queria mostrar a ela o que é ser bicha preta.

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